Amanhã é Domingo,
disse ele, por cima do sorriso mais aberto e espontâneo que conseguira ensaiar
em vários anos de desejos abafados. “Vejo-te amanhã?” tinha-lhe eu perguntado
por cima da minha ingenuidade quase perdida em vários anos.
Amanhã é Domingo,
disse ele, por trás do seu olhar de sincera confiança e intimidade e eu vi todo
o seu esforço para que eu não visse, aquilo que eu vejo quando olho nos seus
olhos e o sinto dizer Amanhã é Domingo.
Amanhã é Domingo,
repeti eu, por cima do sorriso mais doce e tímido que conseguira ensaiar em vários
anos de sorrisos inconformados.
Amanhã é Domingo,
repeti eu, e ele viu por trás do meu olhar a sincera aceitação que eu mostrei
mas esqueci de sentir anos atrás.
Amanhã é Domingo,
repetiu ele, na necessidade de reafirmar o Domingo como apenas Domingo, apenas
um dia na semana. Eu calei a insegurança e ele viu contentamento.
Amanhã é Domingo,
repetiu, com o seu sorriso fácil – forçado – só eu sei – tentando mostrar tudo
o que para além dos Domingos há entre nós. Ele mostrou a segunda e eu vi o dia
antes, ele falou na terça e eu temi o sábado. Ele não mostrou mas eu vi. Eu vi.
Eu vi.
Amanhã é
Domingo, repeti com o meu sorriso treinado – forçado – só eu sei – tentando
esconder a tristeza dos Domingos em que fico sozinha chorando o desejo secreto
de trocar todos os dias meus pelos Domingos que não me dá. Ele não mostrou mas
eu vi. Eu vi. Eu vi.
Ele mostrou-me
os finais de tarde, passados todos os dias. Todos os finais do dia, num quarto
arrendado, numa rua estreita, vestidos pelo desejo e desnudados pelos lençóis. E
eu fechei os olhos e vi os amanheceres a dois onde eu não estou, os jantares
tardios debaixo da luz amarela da cozinha enquanto eu janto sozinha numa sala
vazia.
Amanhã é
Domingo, pensámos os dois, suspirando para disfarçar a ansiedade de não nos
vermos um dia, de não nos termos um dia, de não nos sabermos um dia. Um dia.
Apenas um dia. Como eu queria ter na tua semana esse um dia.
Amanhã é
Domingo, pensou ele, e viu os chinelos junto ao sofá, a chávena de café
aquecendo a mão e o jornal aberto sobre os joelhos para ver o dia lá fora e
esquecer o de dentro.
Amanhã é
Domingo, pensou ele, e viu as cartas cansadas sobre a mesa ao final da noite. Viu
o gelo derretido no final dos copos, no final das conversas, no final das vidas,
que já não são nossas, mas que se recordam ainda e impacientemente se revivem.
Viu o peso de muitos anos que não o fizeram sentir-se feliz.
Amanhã é
Domingo, pensei eu, e vi os sorrisos trocados, por trás das mãos encontradas em
locais onde as mãos não andam nem se esperam, vi os beijos tímidos, que já só
tímidos podem ser, por entre os flashes das fotografias de Domingo.
Amanhã é
Domingo, pensei eu, e vi o corpo dela meio despido sobre a cama, no final da
cama, no final da noite, no final da vida. Quando a vida já não sabe ser outra
vida mas as vidas se querem ainda, reencontram, rebuscam. E eu me sinto triste
assim sem ti, que não consegui ter em tantos anos.
Domingo é um bom
dia, disse ele, sem saber o que dizer, quando sentiu em mim a tristeza de saber
já ser Domingo novamente.
Domingo é um bom
dia? Disse eu com o olhar, quando o perguntar não soube fazer-se pergunta.
Domingo é um bom
dia, disse ele, querendo mudar rapidamente o assunto. Vestiu o seu tom grave -
tão natural! não o soubesse eu ensaiado
para fugir dali – e falou de como a Segunda se segue ao Domingo, da Terça que
vem depois e de tantas coisas que ele diz quando não diz nada e que eu não oiço
quando a única coisa que faço é ouvi-lo.
Domingo é um bom
dia, disse eu, quando senti que mais nada poderia ainda dizer. Guardei a minha
mão para mim, porque sei que não são minhas as suas mãos quando me fala assim.
Olhei com um olhar vazio, porque sei que não são meus os seus olhos quando me
olha assim. E bebi todas as suas palavras, mesmo sabendo que não fala para mim
quando me fala assim.
Mas não foi
Domingo ainda ontem?, perguntei eu, quando me calei no meu silêncio.
Mas não foi
Domingo ainda ontem?, perguntou ele, quando não teve coragem de dizer mais nada.
Amanhã é
Domingo, repetimos os dois, enquanto nos vestíamos em silêncio e nos
despedíamos com os pequenos gestos de sempre.
Domingo é um bom
dia, disse eu, na última vez que nos beijámos, quando quis que o beijo fosse
mais o mais forte e quente dos nossos beijos mas também o mais suave e
descomprometido de todos eles.
Domingo é um bom
dia, disse eu, enquanto lhe perguntava se podia sair eu primeiro naquela noite,
enquanto o ouvia responder que sim, acenando com a cabeça e sorrindo demasiado.
Que fosse eu primeiro, que tomasse cuidado para não ser vista, que chegasse bem
a casa, que passasse um bom Domingo.
Domingo é um bom
dia, disse eu, na última vez que nos vimos, quando olhei sobre o ombro ao sair
pela porta e murmurei quase sem mexer os lábios; quando desci a rua estreita e
mal iluminada, sentindo as gotas que depois da chuva ainda pingavam das
árvores; quando fiquei descalça e caminhei junto à linha do comboio.
Domingo é um bom
dia, soube finalmente quando sorri, pensando que, depois de tantos anos, um
Domingo seria finalmente meu; quando esperei pela luz que se aproximava e
atravessei… Sim, Domingo é um bom dia... para o meu funeral.